domingo, 20 de março de 2011

ACORDA MARIA BONITA!



Simão Pedro

                  A lembrança me traz ainda a cantiga alegre ouvida nos tempos de criança: - “Acorda Maria Bonita, acorda vem fazer o café, o dia já vem raiando e a policia já ta de pé...” Esse canto vivo e forte estremecia toda a rua como um forte trovão no inicio do inverno. Saía porta a fora em disparada atraído pelo canto pra ver aquela mulher se aproximando. Lá estava ela, uma figura enorme para os nossos padrões de mulher, a pele negra se escondia atrás de uma tanga encarnada, seus peitos enormes e arfantes desafiavam a gravidade com seus bicos enormes. A voz continuava firme: “- Acorda Maria Bonita...” Um lenço colorido emoldurava sua cabeça com pontas que balançavam pelos ombros; argolas enormes pendiam da suas orelhas pequenas e uma chupeta azul desbotada e suja caía pendurada no seu pescoço. A visão que eu tinha era de uma Deusa Africana, ali materializada. Eu acompanhava aquele quadro em silêncio, assustado; os olhos compridos percorriam aquela imagem, me impressionava tudo aquilo. Aos poucos a alegria do canto ia cedendo, dando lugar a uma tristeza imensa. Perturbada, aquela mulher sorria agora chorava em minha frente, lágrimas caíam da suas faces, um rosto transtornado agora buscava a multidão que de longe assistia ao espetáculo que se desenhava ali. As pessoas pareciam indiferentes àquela criatura, muitos zombavam e riam daquela pobre alma, ela permanecia ali, sem que ninguém ensaiasse um acolhimento. De repente vi aquela mulher se apequenando diante da multidão e num grito de desespero correu ao seu protetor pedindo socorro: - “Papai Turuka, me ajude!”. De braços abertos aquele homem acolhia a pobre e infeliz criatura. Eu, aos poucos, me aproximava para ver de perto e não perder nenhum detalhe da cena. Via-o envolvendo aquele corpo com um lençol. Ela, agitada e chorando muito, deixava escapar palavrões terríveis. Só se acalmando quando ele colocava em suas narinas um chumaço de algodão embebido em amoníaco.

               A multidão ia aos poucos se dispersando. A pobre mulher estava em silêncio agora, dormia um sono profundo. Depois, despertando da letargia, não se dava conta do que tinha lhe acontecido. Nos períodos de calmaria, era uma dona de casa impecável, cozinhava como ninguém e gostava de ver tudo limpo e arrumado. Não tinha casa, vivia a maior parte do tempo na cadeia pública da cidade. Fez de lá por muito tempo o seu lar. Cuidava da cozinha, fazia a limpeza, lavava e passava, atendendo os presos e a própria polícia, sem ganhar um tostão. Nas horas vagas era ainda abusada sexualmente pelos que ali zelavam pela segurança. Foi mãe de uma grande prole, nascidos da exploração a que era submetida. Suas crises se tornavam mais freqüentes após os partos, quando seus filhos eram dela apartados. Nas crises, gostava de usar uma chupeta e sempre carregava uma boneca nos braços, parecia querer substituir os filhos que dela eram separados. A sua condição não permitia exercer seu papel de Mãe junto a eles, devido a sua debilidade. Seu nome de batismo era Ester, e a ele acrescentaram o sobrenome de: “doida”. Não sei a qual família pertencia, mas dizem que ela era do bairro Cariri. Seu último pouso, foi o Novo Hotel, morou ali alguns anos com a Dona Celestina e o Seu Miguelzinho. Nos últimos anos, conservava ainda aquele lenço colorido e as argolas redondas, na face estampava ainda um sorriso tímido. Seus seios caíam por cima de uma enorme barriga, seu corpo em quase nada lembrava aquela deusa africana. Morou ali ainda por muito tempo, só saindo por conta de uma briga que teve com a delicada Isabel Puba, que morava ali num quartinho na lateral do Hotel.Depois dessa confusão, uma filha apiedada da sua condição, resolveu finalmente dar a ela o lar que tanto sonhou. A sua última crise por mim testemunhada, se deu em junho de 1970, com a partida do seu protetor, o “papai Turuka”. Ela ao tomar conhecimento do fato, inconformada com a perda, entra em desequilíbrio. Corre despida até o cemitério e é encontrada escavando o túmulo do seu protetor com as próprias mãos. Por três dias rondou aquele lugar, que ficou guardado por dois homens, pra evitar sua ação. O tempo passou, mas ela sempre que nos avistava , com os olhos cheios dágua, fazia a pergunta de sempre: - “ Cadê o Papai Turuka ?” Nas minhas reflexões fico a perguntar, por onde andas, Ester? Pra onde foi o teu canto? O que a vida fez com teus encantos? Por onde anda nossa Deusa Africana?

Foto: meramente ilustrativa.

21 comentários:

Horácio Lima disse...

Caro Simão Pedro, retornei recente de Campo Maior, onde dei um giro pela cidade, o Novo Hotel e Petisqueira praticamente inexistem, e, lendo a sua narrativa fui vizinho da Ester alí no bairro Matadouro e testemunhei muitas cenas fortes quando essa tinha as suas crises mentais, muito deprimente. Não sei se a Ester ainda sobrevive.


hlima/sp

Simão Pedro disse...

Caro Horácio, soube da sua passagem por aqui, não te encontrei desta vez, quem sabe na próxima. Obrigado pela ajuda, no texto escrevi Cariri, na realidade era o Matadouro, o bairro que ela residiu.Um forte abraço.

Anônimo disse...

Inacreditável, sábado falei da Ester para minhas filhas, as coisas que ela fazia e o que gostava de dizer, "Eu sou crente do ..." onde ela está? eu gostava dela, ela era caridosa , na minha inocência achava muito engraçado tudo o que ela dizia, desejo que ela esteja bem, Deus é pai. Gostaria de encontrar novamente a Ester, fico feliz em saber que ela vive com as filhas.

zan disse...

Eu me lembro da Ester, aparecendo quase todo dia na farmácia do Irmão Turuka, nos idos dos 60, querendo tomar a benção dele, um dia ela apareceu lá dizendo que estava grávida dum cidadão que eu me lembro também quando criança fui ver um dia a matança de boi no matadouro e o homem lá com uma marreta de ferro esbagaçando a cabeça dos bois, eu de noite dando trabalho pra minha mãe pra poder dormir, me lembrando daquelas cenas apavorantes...a Ester fazendo o maior suspense pra dizer que o autor da façanha tinha sido Paulão, que era casado, sonso que nem um bode amarrado, negando tudo... ê tempo bom, Simãozinho... 67/67, mas teve um dia que o povo começou a gritar:"a Ester tá vindo aí, seu Turuka, da banda do mercado, do jeito que nasceu..." Turuka com aquela de anjo torto, só acreditou quando viu Ester passar ali na frente da Farmácia com a turba atrás gritando animada até a chegada da polícia...

Anônimo disse...

Lembro-me bem da Ester, Record0-me que diariamente ia a casa de D. Mirtes Bona pegar pratos de comidas enrolados em panos para levar aos presos da cadeia municipal, fazia isto diriamente. Ester era como uma mãezona dos presos, conseguia alimentação, remedios, cigarros a eles.
Vi inumeras vezes crises de sua loucura na praça Bona Primo, onde sem nenhuma peça de roupa passeava tranquila e inocente entre as pessoas.
Como relatou o Simão, a chupeta e o pano na cabeça era o que usava quando estava em suas crises. Pessoa do bem e que chamava a todos que reconhecia como homens que a ajudavam de "Pai", "Paizinho". Grande figura.

Gracinha Torres disse...

Eu não me lembro.
Saudades, Netto, José.

Antonio de Souza - De Cuiabá disse...

Eu era um moleque nos anos 60 e 70, mas, no nosso meio, era comum o falatório sobre Ester. Tento lembrar se a vi, de frente, em alguma ocasião. Só sei que, com o tempo, Ester virou, digamos, sinônimo de "doidice". Bastava alguém ser apontado com portador de problemas mentais, para ser chamado de "Ester". É isso. Mas, o registro do Simão Pedro é um primor. O texto é nota 10. Parabéns. Com certeza, há muitos fatos idênticos, com personagens que marcaram época em nossa Campo Maior.

José Miranda Filho disse...

A Gracinha não se lembra da Ester, mas, finalmente, se relembrou do Bitorocara. Fazia um tempão a sua ausência. Não é somente você que sente saudades, Gracinha; eu também sinto. É muito bom revê-la aqui.
Quanto à Ester, tenho vaga lembrança dela. A minha memória não anda lá muito "boa da cabeça", não. À toa, pelas ruas, semidespida, a Ester. Recordo, como imagem de sonho, daquelas que não se sabe se é realidade ou sonho mesmo, minha irmã, Ana Paula, ainda criança, fazendo um escarcéu quando a pobre mulher aparecia nas proximidades de nossa casa.

Anônimo disse...

Campo Maior se ainda tem a estação talvez será por pouco tempo. Porque a estrada de ferro está sendo destruída por vandalização, inclusive vandalização "oficial" já que, no dia 19 de fevereiro, foi filmado um trator da prefeitura quebrando a mesma na rua que desce do quartel da PM. Cadê a imprensa de Campo Maior, cadê os ditos intelectuais( os Jão Alves da vida, os Zans da babança), os historiadores. Cadê todo mundo?...

Anônimo disse...

O que a Ester tem a ver com os trilhos da rede ferroviária?

Lizete Lemos disse...

Coisa de doida e abestada provocadora. Liga não gente a Ester tem mais juizo doque essa criatura. Seu Netto a inveja do blog só se amarrar de corrente na torre do monumneto. Vão trabalhar e procurar fazer algo que preste.

Anônimo disse...

Lizete eu tô falando do comentário fora do espaço.. Presta atenção menina.

Anônimo disse...

Caro Simao Pedro,foi muito boa a lembrança da ESTER que era uma boa alma, lembro muito bem dela quando ainda era pequeno pois eu morava na praça da Bandeira,proximo a casa dela que ficava em frente ao matadouro uma casa de palha e parede de pau a pique a famosa casa de taipa,eu convivi com a Ester pois ela viva na minha casa e tambem da D. Desterro Paz, na minha casa ela chamava a minha mãe de mamãe Nilsa e muitas vezes ela lavava as roupas, quando estava em crize não andava nem na minha casa e tambem da D.Desterro Paz. parabens Simão pela lembrança, falta tambem alguem lembrar da Dodó,da Baba Azul da Isabel Izaura que andava com uma trouxa na cabeça por tada C Maior etc..... abraço João Antonio

Netto de Deus disse...

Reprisarei a Dodó, ao lado da Salomé, as mais pedidas!

Bezerra da Barra do Ceará. disse...

Seu Zé esquenta não por que a gente sabe que politico no Brasil e a igreja nunca foram boa bisca não. Mas que a rádio era boa isso era. Rapaz dava perto do meio dia o radio já tava ligado na radio Pioneira com o Carlos Augusto e o outro lá que eu não lembro o nome que dizia que a Pioneira não para. Tinha tambem a tradicional oração por um dia feliz do dom Avelar. Mais a gente era muito jovem e não sabia das coisas macomunada desse povo. Mais isso é outra coisa. Estou falando da radio da igreja a Pioneira. Acredita quando eu cheguei aqui em Fortaleza eu me peguei logo com outra rádio que era como se dizia co irmã da igreja da radio Pioneira. O nome dela era radio Asunção de Fortaleza. Estas coisa se acaba um dia seu Zé. Mas com está sendo pra melhor, melhor será com a graça de Deus. Né Mesmo?

Luis Francisco Bezerra, Barueri, SP disse...

Gente vamos falar da rádio do Tarzan e do locutor Vitor. cadê eles? Uma delas ficava perto da casa do seu Vespa e do Nenem da Agência Cruz. Cadê o Nenem?

Anônimo disse...

a Gracinha Torres tem a memoria muito falha . Saiu de Campo Maior ja adulta. Eu sou muito mais nova e lembro . Cuidado Gracinha com o alemao.

Simão Pedro disse...

Obrigado João Antônio, seu comentário veio nos trazer mais informações, acho legal essa troca.um abraço a todos.

zan disse...

Achar que a recuperação da linha férrea que passa por Campo Maior dependa de mim ou do João Alves, dois babões juramentados, é dar pra gente uma importância que nós não temos... Me comovo, mas não resolve nada... Isso aqui não sai fácil do atraso cronico e secular porque as pessoas acham que reclamar e encontrar "bodes respiratórios" (Cel. Jofre Castelo Branco, in memoriam...) para qualqur coisa, resolve alguma coisa...

Simão Pedro disse...

O bom meu irmão, é que tu perde o bom humor.

Simão Pedro disse...

Corrigindo a frase, quiz dizer: O bom meu irmão é que tu não perde o bom humor.

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